terça-feira, 7 de abril de 2015

Quem sou eu?

Quem sou eu? que importa quem?
 Sou um trovador proscrito,
 Que trago na fronte escrito
 Esta palavra — Ninguém! —
 (A. E. Zalvar — Dores e Flores)

 Amo o pobre, deixo o rico,
 Vivo como o Tico-tico;
 Não me envolvo em torvelinho,
 Vivo só no meu cantinho:
 Da grandeza sempre longe,
 Como vive o pobre monge.
 Tenho mui poucos amigos,
 Porém bons, que são antigos,
 Fujo sempre à hipocrisia,
 À sandice, à fidalguia;
 Das manadas de Barões?
 Anjo Bento, antes trovões.
 Faço versos, não sou vate,
 Digo muito disparate,
 Mas só rendo obediência
 À virtude, à inteligência:
 Eis aqui o Getulino
 Que no pletro anda mofino.
 Sei que é louco e que é pateta
 Quem se mete a ser poeta;
 Que no século das luzes,
 Os birbantes mais lapuzes,
 Compram negros e comendas,
 Têm brasões, não — das Kalendas,
 E, com tretas e com furtos
 Vão subindo a passos curtos;
 Fazem grossa pepineira,
 Só pela arte do Vieira,
 E com jeito e proteções,
 Galgam altas posições!

Mas eu sempre vigiando
 Nessa súcia vou malhando
 De tratantes, bem ou mal
 Com semblante festival.
 Dou de rijo no pedante
 De pílulas fabricante,
 Que blasona arte divina,
 Com sulfatos de quinina,
 Trabusanas, xaropadas,
 E mil outras patacoadas,
 Que, sem pinga de rubor,
 Diz a todos, que é DOUTOR!
 Não tolero o magistrado,
 Que do brio descuidado,
 Vende a lei, trai a justiça
 — Faz a todos injustiça —
 Com rigor deprime o pobre
 Presta abrigo ao rico, ao nobre,
 E só acha horrendo crime
 No mendigo, que deprime.
 - Neste dou com dupla força,
 Té que a manha perca ou torça.
 Fujo às léguas do lojista,
 Do beato e do sacrista —
 Crocodilos disfarçados,
 Que se fazem muito honrados,
 Mas que, tendo ocasião,
 São mais feroz que o Leão.
 Fujo ao cego lisonjeiro,
 Que, qual ramo de salgueiro,
 Maleável, sem firmeza,
 Vive à lei da natureza;
 Que, conforme sopra o vento,
 Dá mil voltas num momento.
 O que sou, e como penso,
 Aqui vai com todo o senso,
 Posto que já veja irados
 Muitos lorpas enfunados,
 Vomitando maldições,
 Contra as minhas reflexões.
 Eu bem sei que sou qual Grilo,
 De maçante e mau estilo;
 E que os homens poderosos
 Desta arenga receiosos
 Hão de chamar-me Tarelo,

 Bode, negro, Mongibelo;
 Porém eu que não me abalo,
 Vou tangendo o meu badalo
 Com repique impertinente,
 Pondo a trote muita gente.
 Se negro sou, ou sou bode
 Pouco importa. O que isto pode?
 Bodes há de toda a casta,
 Pois que a espécie é muito vasta.
 Há cinzentos, há rajados,
 Baios, pampas e malhados,
 Bodes negros, bodes brancos,
 E, sejamos todos francos,
 Uns plebeus, e outros nobres,
 Bodes ricos, bodes pobres,
 Bodes sábios, importantes,
 E também alguns tratantes...
 Aqui, nesta boa terra
 Marram todos, tudo berra;
 Nobres Condes e Duquesas,
 Ricas Damas e Marquesas,
 Deputados, senadores,
 Gentis-homens, veadores;
 Belas Damas emproadas,
 De nobreza empantufadas;
 Repimpados principotes,
 Orgulhosos fidalgotes,
 Frades, Bispos, Cardeais,
 Fanfarrões imperiais,
 Gentes pobres, nobres gentes
 Em todos há meus parentes.
 Entre a brava militança
 Fulge e brilha alta bodança;
 Guardas, Cabos, Furriéis,
 Brigadeiros, Coronéis,
 Destemidos Marechais,
 Rutilantes Generais,
 Capitães de mar-e-guerra,
 — Tudo marra, tudo berra —
 Na suprema eternidade,
 Onde habita a Divindade,
 Bodes há santificados,
 Que por nós são adorados.
 Entre o coro dos Anjinhos
 Também há muitos bodinhos. —
O amante de Syiringa
 Tinha pêlo e má catinga;
 O deus Mendes, pelas contas,
 Na cabeça tinha pontas;
 Jove quando foi menino,
 Chupitou leite caprino;
 E, segundo o antigo mito,
 Também Fauno foi cabrito.
 Nos domínios de Plutão,
 Guarda um bode o Alcorão;
 Nos lundus e nas modinhas
 São cantadas as bodinhas:
 Pois se todos têm rabicho,
 Para que tanto capricho?
 Haja paz, haja alegria,
 Folgue e brinque a bodaria;
 Cesse pois a matinada,
 Porque tudo é bodarrada!

(Luiz Gama)

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